a Mariana Guedes me jogou uma borracha bem na cara. Mas a professora foi olhar para a gente só na hora que eu joguei a borracha de volta. |
UM
O primeiro dia de aula é o dia que eu mais gosto em segundo lugar. O que eu mais gosto em primeiro é o último, porque no dia seguinte chegam as férias.
Os dois são os melhores dias na escola porque a gente nem tem aula. No primeiro dia não dá para ter aula porque nosso corpo está na escola, mas a nossa cabeça ainda está nas férias. E no último, também não dá para ter aula porque o nosso corpo está na escola, mas a nossa cabeça já está nas férias.
Era o primeiro dia e era para ser a aula de português mas não era porque todo mundo estava contando das férias. E como todo mundo queria contar mais do que ouvir, o barulho na classe estava mesmo ensurdecedor. O que explica o fato de ninguém ter escutado a professora gritando para a gente parar de gritar. Todo mundo estava bem surdo mesmo. Mas quando ela bateu com os livros em cima da mesa a nossa surdez passou e todo mundo olhou para ela.
Ela estava em pé, na frente do quadro e ficou em silêncio, com uma cara bem brava, olhando para a gente.
Quando um professor está em silêncio com uma cara bem brava olhando para você, é melhor também ficar em silêncio com uma cara de sem graça olhando para um ponto qualquer que não seja a cara brava do professor.
A professora puxou a cadeira dela e se sentou.
A professora puxou a cadeira dela e se sentou.
Atrás dela, no quadro-negro, eu vi decretado o fim das nossas férias e o fim do nosso primeiro dia de aula sem aula. Estava escrito:
Redação: escrever 30 linhas sobre as férias.
Eu sabia que as férias de ninguém iam ser mais as mesmas na hora que virassem redação. É simples: férias é legal, redação é chato. Quando a gente transforma as nossas férias numa redação, elas não são mais as nossas férias, são a nossa redação. Perdem toda a graça.
Todo mundo tirou o caderno de dentro da mochila. Menos eu.
Eu fiquei olhando para aquela frase no quadro enquantos os zíperes e velcros das mochilas eram os únicos barulhos na sala. De repente as nossas férias ficaram silenciosas. Onde já se viu férias sem barulho?
E além do mais, eu tenho certeza que a professora nem quer saber de verdade como foram as nossas férias. Ela só quer saber como é a nossa letra e se a gente tem jeito para escrever redação. Aqueles dois meses inteirinhos de despreocupações estavam prestes a virar 30 linhas de preocupações com acentos, vírgulas, parágrafos e ainda por cima com a letra legível depois de tanto tempo sem treino.
DOIS
A turma inteira já estava escrevendo quando eu percebi que a professora estava só olhando para mim.
Quando um professor fica parado só olhando para você é porque você tinha que estar fazendo outra coisa que não era o que você está fazendo.
A outra coisa que eu tinha que estar fazendo era a minha redação. Então eu puxei a minha mochila e peguei o caderno. É claro que a minha mochila tem o fecho de velcro e que todo mundo olhou para mim quando eu abri. Só a professora é que não olhou de novo porque ela já estava olhando antes mesmo.
Peguei minha caneta . Eu nem sabia mais segurar direito a caneta. Escrevi:
Min has F ér ias
Mas a letra ficou péssima e eu resolvi arrancar a folha para começar bem o meu caderno. E todo mundo olhou de novo para mim, até a professora que já tinha parado de me olhar.
Troquei a caneta por um lápis, assim se a letra ficasse horrível era só apagar em vez de ter que arrancar outra folha.
Coloquei as minhas férias lá no alto e bem no meio da página. Pulei uma linha. Parágrafo.
Min has F ér ias
Outro problema de transformar as nossas férias em redação é fazer os dois meses caberem nas tais 30 linhas. Porque se a gente fosse contar mesmo tudo o que aconteceu, as 30 linhas iam servir só para um dia de férias e olhe lá.
E aí você olha para o seu relógio e descobre que as 30 linhas, que pareciam poucas para contar todas as suas férias, viram muitas porque você só tem mais 15 minutos de aula para fazer a redação.
Começar as férias é a coisa mais fácil do mundo. Em compensação, começar uma redação sobre as férias é tão difícil quanto começar as aulas.
Fiquei me lembrando como é que eu tinha começado as minhas férias de verdade. Assim eu podia começar a redação do mesmo jeito. Mas eu comecei as minhas férias de verdade arrumando a mala para ir para a casa do meu avô. E agora só faltavam 12 minutos para terminar a aula. E em 12 minutos eu não ia conseguir arrumar a mala. Pelo menos não do jeito que a minha mãe gosta que eu arrume. Então decidi começar as férias da minha redação direto da casa do meu avô.
Minhas Férias
Eu sempre adoro as minhas férias na casa do meu avô. Principalmente porque não tem aula.
Não. Talvez esse seja um começo de redação muito pesado para o começo das aulas.
Apaguei a 2ª frase.
Minhas Férias
Eu sempre adoro as minhas férias na casa do meu avô
Lá tem um campinho de futebol bem legal e uma turma de amigos bem grande.
Isso é perfeito porque um campinho sem uma turma grande não serve para nada. E uma turma grande sem campinho não cabe em lugar nenhum que não seja um campinho. A gente passa o dia todo jogando futebol e só para de jogar quando já está escuro e não dá mais para ver a bola. Então já é hora de jantar.
Depois do jantar os meus melhores amigos da turma vão para a casa do meu avô e a gente pode continuar jogando, só que o futebol de botão que não dá indigestão. Aí, a gente pode jogar até tarde porque no dia seguinte não tem aula. É por isso que férias é bom.
Achei que desse jeito a minha observação a respeito das aulas ficava mais sutil. Continuei.
Teve um dia que eu fiz um golaço. Não no futebol de botão, no de verdade.
O gol veio de um pase de craque do Paulinho que é o meu melhor amigo entre os meus melhores amigos da turma. Você sabe que para jogar futebol não adianta só ser bom de bola. Tem que ter tatica.
O Paulinho driblou um, dois e eu vi que ele ia passar pelo terceiro. Ele também me viu. Aí eu me enfiei pela esquerda e recebi a bola. Chutei direto. Eu fiz um golaço tão grande que até furou a rede e estilhaçou em mil pedaços a janela do vizinho.
Deu a maior confusão porque enquanto a turma pulava o vizinho apareceu bravo com abola em baixo do braço e a mulher dele veio atrás. Eu tive até que parar com a minha comemorassão. Mas a mulher do vizinho que veio atrás dele falou para ele que criança é assim mesmo e que a gente estava só se divertindo e que ninguém fez aquilo de propósito. E era verdade mesmo porque a culpa não foi nossa da rede ter furado. E aí acabou ficando tudo bem. O meu vizinho devolveu a bola, verificou a rede e disse que o meu gol foi mesmo um golaço mas que era para a gente tomar mais cuidado com as janelas das casas ao lado.
O sinal tocou bem nessa hora. Eu nem contei quantas linhas eu tinha escrito porque não ia dar tempo de mudar nada mesmo.
Arranquei a folha e dei as minhas férias para a professora.
TRÊS
Depois da aula de português vinha aula dupla de educação física. A maior sorte que se pode ter num primeiro dia de aula é ter aula dupla de educação física. Dá até para ficar contente de ter voltado para a escola. E dá até para acreditar quando a nossa mãe fala que essa é a melhor época da nossa vida, quando ela faz aquele discurso que toda mãe faz.
Discurso:
"Aproveita, meu filho. Essa é a melhor época da sua vida. Ir para a escola é uma delícia. Quando você crescer vai se lembrar da escola e vai sentir uma saudade danada".
Minha mãe diz que é para aproveitar a escola porque depois que a gente cresce a gente fica cheio de problemas para resolver. Aí é que está. Eu ainda nem cresci e já estou cheio de problemas. Só no ano passado eu tive que resolver 187. E não foi nem para mim. Foi para o professor de matemática.
QUATRO
A semana passou bem rápido e quando a gente viu já era sexta-feira.
Ter chegado a sexta-feira era ótimo. Agora só faltavam 19 semanas para as próximas férias. A única coisa ruim é que na sexta eu tinha aula dupla de português e a professora ia trazer as nossas redações de volta.
Quando a professora entrou na sala eu tinha acabado de puxar o elástico do sutiã da Mariana Guedes. Agora a moda das meninas era usar sutiã por baixo da camiseta. E a nossa moda era puxar o elástico para o sutiã estalar bem nas costas delas. Eu corri e a Mariana Guedes me jogou uma borracha bem na cara. Mas a professora foi olhar para a gente só na hora que eu joguei a borracha de volta. E aquela Mariana Guedes ainda abaixou e a borracha passou bem perto dos óculos da professora.
A professora ficou só me olhando de novo, igual no dia da redação, e então eu me sentei esperando uma daquelas broncas humilhantes no meio da classe. Mas a professora não falou nada.
Quando você apronta uma dessas e o professor não fala nada, não é porque o professor é um cara bem legal. É que o que vem pela frente é pior do que o pior que você imaginava.
O pior foi colocado bem em cima da minha mesa. As minhas férias, que tinham sido perfeitas para mim, não chegaram nem perto de terem sido boas para a professora. Elas voltaram cheias de defeitos. Faltou um esse no passe de craque do Paulinho, um acento na minha tática e a minha comemoração eu escrevi com tanta empolgação que acabou saindo com dois esses em vez de cê-cedilha.
E o pior do que eu imaginava foi o que ela fez com o meu golaço que estilhaçou em mil pedaços a janela do vizinho. Ela disse que "em mil pedaços" é um adjunto adverbial e que tinha que ficar entre vírgulas.
Eu olhei na Gramática e lá estava a explicação que um adjunto adverbial é um termo acessório e a gente pode eliminar aquela parte da frase que ela continua a fazer sentido. Eu queria ver a professora dizendo para o meu vizinho que aqueles mil pedacinhos da janela dele eram só um adjunto adverbial.
E tem mais uma coisa: eu estava de férias. Era muito mais importante marcar o gol do que as vírgulas, concorda?
E as minhas férias ficaram assim:
Minhas Férias
Eu sempre adoro as minhas férias na casa do meu avô
Lá tem um campinho de futebol bem muito legal e uma turma de amigos bem grande. Por que não substituir um bem por um muito?
Isso
é perfeito porque um campinho sem uma turma grande não serve para nada.
E uma turma grande sem campinho não cabe em lugar nenhum que não
seja um campinho. A gente passa o dia todo jogando futebol e só para de
jogar quando já está escuro e não dá mais para ver a bola. Então já é
hora de jantar. não se consegue mais
Depois
do jantar os meus melhores amigos da turma vão para a casa do meu avô e
a gente pode continuar jogando, só que o futebol de botão que não dá
indigestão. Aí, a gente pode jogar até tarde porque no dia seguinte não
tem aula. É por isso que férias é bom. as férias são boas.
Teve uUm dia que eu fiz um golaço. Não no futebol de botão, no de verdade.
O
gol veio de um passe de craque do Paulinho que é o meu melhor amigo (entre os meus melhores amigos) da turma. Você sabe que para jogar futebol
não adianta só ser bom de bola. Tem que ter ta´tica.
O
Paulinho driblou um, dois e eu vi que ele ia passar pelo terceiro. Ele
também me viu. Aí eEu me enfiei pela esquerda e recebi a bola. Chutei
direto. Eu fiz um golaço tão grande que até furou a rede e estilhaçou, em
mil pedaços, a janela do vizinho. adjunto adverbial
Deu
a maior confusão porque enquanto a turma pulava o vizinho apareceu
bravo com a|bola em_baixo do braço e a mulher dele veio atrás. Eu tive
até que parar com a minha comemorasçsão. Mas a mulher do vizinho que veio
atrás dele falou (para ele) que criança é assim mesmo e que a gente
estava só se divertindo e que ninguém fez aquilo de propósito. E era
verdade mesmo porque a culpa não foi nossa da rede ter furado. E aí
acabou ficando tudo bem. O meu vizinho devolveu a bola, verificou a rede
e disse que o meu gol foi mesmo um golaço mas que era para a gente
tomar mais cuidado com as janelas das casas ao lado. quanto e!
A professora não fez nenhum outro comentário sobre o que eu tinha escrito. Para ela tanto fazia se o meu gol tinha sido um golaço ou um frango do goleiro. Eu fiquei bem chateado. Ela tinha acabado com as minhas férias. Isso significava que era a terceira vez que as minhas férias acabavam numa semana só. Não podia existir nada pior do que isso na vida de um garoto de 11 anos.
Mas existia.
CINCO
No final da aula a professora me chamou na mesa dela. Eu tinha que fazer de lição para segunda-feira a análise sintática da frase: "Eu fiz um golaço tão grande que até furou a rede e estilhaçou, em mil pedaços, a janela do vizinho".
Era o fim. As minhas férias já tinham virado redação e agora acabavam de virar lição de casa. E uma lição dificílima. Fazer análise sintática! Eu nem me lembrava mais o que era isso.
Do jeito que as coisas vão, quando chegarem as minha próximas férias eu não vou saber se é para ficar feliz ou triste. Eu vou falar "ah, não, férias me lembram redação e lição de casa" e ninguém vai entender nada.
Então eu pensei que ainda bem que amanhã era sábado. Eu já comecei a me lembrar que a turma do prédio tinha marcado pólo aquático na piscina. Peguei a minha mochila e saí correndo para não perder o ônibus para casa. Não me lembro se a professora continuou na sala ou não. Eu só me lembro que fui o último a sair.
SEIS
O fim de semana me fez esquecer da escola e da primeira semana de aula, o que foi bom. O único detalhe foi que eu também acabei esquecendo da lição de português. E na segunda de manhã eu tive que fazer tudo correndo quando cheguei na escola, antes de tocar o sinal.
Análise sintática já é uma coisa bem complicada quando você tem que fazer o exercício logo depois que a professora acabou de explicar como se faz. Imagina fazer depois das férias de verão quando você mudou da quinta para a sexta série mas nem se lembra como é que passou de ano.
Eu peguei o meu caderno e escrevi a minha frase.
Eu fiz um golaço tão grande que até furou a rede e estilhaçou, em mil pedaços, a janela do vizinho.
Depois fui escrevendo o que eu me lembrava que tinha que ter numa análise sintática.
sujeito:
predicado:
objeto direto:
objeto indireto:
partícula apassivadora:
Isso era tudo que eu me lembrava. Então eu comecei a escrever do lado de cada coisa dessas uma análise sintática. Pus lá:
sujeito: O meu vizinho. Que realmente é um sujeito de meter medo apesar de eu achar que ele deve ser legal porque está casado há um tempão com a mulher dele que é bem legal.
predicado: O meu vizinho de novo. Isso, se a gente colocar no meio dessa palavra a sílaba JU e então a palavra vira preJUdicado porque ele foi mesmo o grande prejudicado dessa história.
objeto direto: A bola. Nem precisa explicar porquê.
objeto indireto: Eu. Porque a janela quebrou em mil pedaços por causa do meu chute mas na verdade foi culpa da rede que furou.
partícula apassivadora: Essa era a mulher do meu vizinho que apassivou a briga e se você reparar como ela é pequena eu acho que partícula é o que ela é.
Pronto. Acabei a lição e o sinal nem tinha tocado ainda. Fechei o meu caderno. Depois eu abri de novo. Lembrei de mais uma coisa que tinha na análise sintática e escrevi:
adjunto adverbial: em mil pedaços.
No final da aula de português eu deixei a minha lição na mesa da professora e fui para a minha aula dupla de educação física.
SETE
Na minha aula dupla de portugês da sexta-feira, a professora me entregou a análise sintática. Eu tirei zero e tive que escrever toda essa história contando tudo isso que aconteceu para você. Ela me disse que você é que ia decidir o que fazer comigo, porque você é que é o Diretor dessa escola e ela não sabia que atitude tomar. Foi isso.
Assinado:
Guilherme Pontes Pereira
6ª série B - Manhã
No dia seguinte o Diretor me chamou na sala dele. Ele já tinha lido toda a história que eu escrevi e eu já estava pensando no que eu ia dizer para os meus pais quando ele me expulsasse da escola. Eu ia dizer:
- Mãe, pai, fui expulso da escola.
Eu entrei na sala do Diretor e me sentei na cadeira bem na frente dele. Quer dizer, na frente mais ou menos, porque era uma daquelas cadeironas que a gente afunda dentro, então o porta-lápis, que ficava na mesa do diretor, tapava a cara dele até o nariz. Mas ele chegou o porta-lápis para o lado e eu consegui olhar para ele bem de frente. E ele disse:
- Guilherme, eu fiquei impressionado com a história que você escreveu. Você precisa fazer mais redações.
Então ele me mandou de volta para a sala de aula.
Eu fiquei pensando muito nisso tudo porque no começo não estava entendendo nada. Mas depois eu descobri por que escolheram aquele cara para ser o Diretor. Ele é bem inteligente. Fazer mais redações era mesmo um castigo muito pior do que ser expulso da escola.
Autora
Christiane Gribel
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