6 de outubro de 2014

Eliza


Quando se nasce pobre, tem que batalhar. As coisas são assim, se você quer uma vida digna, tem que ir em busca dela. Sempre fui uma pessoa trabalhadora, honesta, sonhadora. Para mim, qualquer trabalho lícito é decente, não tenho medo de trabalhar. Na verdade, não tinha medo. Tudo mudou naquela noite.
Fazia certo tempo que eu trabalhava em um hotel, não muito distante de minha casa. Naquele dia, precisei fazer horas extras, pois estávamos recebendo um grande evento. Em troca do excedente de trabalho, ganharia, além da justa gorjeta, uma carona.

“Que ótimo”, pensei comigo. Tudo ia bem, meu horário havia findado e o horário extra, idem. Foi então que fui encontrar com o responsável pela minha carona. “Só vou poder te levar às 4 horas. Agora estou ocupado”. Olhei para o relógio, 1h45. Faltava um tempo considerável ainda.
“Acho que vou andando”, disse enquanto ajeitava minhas coisas para ir para casa, “não é muito longe”. Aproximadamente 2h10 eu saí, rumo ao meu lar. Havia muita escuridão nas ruas, quase desertas. Eu andava tranquilamente, refletindo sobre a vida, sempre gostei de pensar em coisas atoa, só por pensar.
Entre um plano e outro, olhei para trás. Vi, então, um homem. O senhor aparentava ter seus 40 anos, era branco, alto, cabelos grisalhos e mal cuidados. Continuei meu caminho, agora pensava sobre as contas que deveria pagar na manhã seguinte.
Olhei novamente para o homem, percebi que ele acelerava o caminhar em minha direção. Apertei o passo e cruzei a rua. O senhor repetiu meu gesto. Esperei mais alguns metros e, novamente, cruzei a rua. Ele o fez igual. A essa altura, confesso, o cérebro começava a desconfiar e o coração começava a acelerar.
“Vou atravessar a rua mais uma vez, se ele me seguir, ‘pernas para que te quero’”. Assim fiz. Ele também. Foi então que pensei em começar a correr. Eu estava, sim, pensando mal do homem, imaginando que ele era um fugitivo de Azkaban, assassino em série e essas coisas. Não me passou pela mente algo mais calmo. Mas, sou homem e não pegaria bem eu correr. Já pensou se me vissem fugindo de um senhor, as 2h30 da madrugada? Poderia não ficar bem para minha imagem.
Comecei, apenas, a andar mais rápido. Ele idem. Tentei me apressar e esquecer ele. Quando me dei conta da proximidade que estávamos, não havia mais como correr. Foi então que veio uma ideia. Coloquei a mão dentro da camisa, simulando uma arma. O senhor se aproximou, agora era a hora de bancar o valente.
Fui para cima dele, perguntando o que queria e porque me seguia. Ele já vinha tirando uma faca do bolso e me dizendo que não gostava de vagabundo. Nessa hora, confesso, assisti a um filme de minha vida: minha infância, no sítio; minha juventude, na cidade; minha vida adulta, com medo de um homem e uma faca; Eliza, áh, pensei em Eliza também. Nossa, em menos de 2 segundos eu já estava na formatura dos meus filhos com ela, que, provavelmente, nem sabia que eu existia. Como eu gostaria de ter o coração dela para mim, áh, Eliza. Mas não era hora de escolher o terno, eu estava quase morrendo.
Voltei para a realidade. Infelizmente, o homem continuava lá, parado em minha frente, me olhando. “É agora, meu Deus”, gritei em silêncio. Em minha cabeça, agora, só passavam coisas como: Ave Maria, Pai Nosso, Creio em Deus Pai... A faca e a mão dele se aproximavam de meu coração.
Gostaria de poder dizer que eu tive forças para correr, ou que uma viatura da polícia, coincidentemente, passou pelo local, ou ainda que o homem fora abduzido por forças estranhas. Não. Não foi assim.
Semana passada, 10 anos após essa terrível noite, acordei do coma. Ouvi comentários de que era um milagre eu ter resistido. Aparentemente, a faca ficou em meu coração, quase morri. Quem era o homem? Nada de fugitivo de Azkaban, menos ainda assassino em série. Aquele homem, que quase acabou com todos meus planos, era só mais um bêbado, que agredia a mulher, faltava no trabalho, votava no 13.
Eliza. Procurei saber dela. Já imaginava que não a encontraria em minha espera, tudo bem, estava preparado para vê-la com o marido, o filho. Só queria matar minha curiosidade, depois de tanto tempo. Fui até seu antigo endereço, não morava mais lá. A dona da casa, muito simpática, me estendeu um pequeno envelope.
Não pude acreditar no que vi. Uma lembrança de sua Missa de Sétimo Dia. Como? Não pude nem tê-la para mim, por um dia que fosse. Ainda bem que já existe internet fácil nos dias de hoje.
Eliza alguma coisa. Achei a notícia. “Moça é atropelada ao tentar fugir do pai, bêbado, que tentava lhe esfaquear. Eliza teve morte cerebral. 22 de agosto de 2003. Coincidência, mesmo dia que eu fui... esfaqueado... por um bêbado.
Voltei ao hospital, implorei por informações, consegui o registro de meu transplante e, não podia ser. Teria para sempre comigo o coração de minha Eliza, que Deus a tenha.

RinelE


Bruna Pradella

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