Quando
se nasce pobre, tem que batalhar. As coisas são assim, se você quer uma vida
digna, tem que ir em busca dela. Sempre fui uma pessoa trabalhadora, honesta,
sonhadora. Para mim, qualquer trabalho lícito é decente, não tenho medo de
trabalhar. Na verdade, não tinha medo. Tudo mudou naquela noite.
Fazia
certo tempo que eu trabalhava em um hotel, não muito distante de minha casa.
Naquele dia, precisei fazer horas extras, pois estávamos recebendo um grande
evento. Em troca do excedente de trabalho, ganharia, além da justa gorjeta, uma
carona.
“Que
ótimo”, pensei comigo. Tudo ia bem, meu horário havia findado e o horário
extra, idem. Foi então que fui encontrar com o responsável pela minha carona.
“Só vou poder te levar às 4 horas. Agora estou ocupado”. Olhei para o relógio,
1h45. Faltava um tempo considerável ainda.
“Acho
que vou andando”, disse enquanto ajeitava minhas coisas para ir para casa, “não
é muito longe”. Aproximadamente 2h10 eu saí, rumo ao meu lar. Havia muita
escuridão nas ruas, quase desertas. Eu andava tranquilamente, refletindo sobre
a vida, sempre gostei de pensar em coisas atoa, só por pensar.
Entre
um plano e outro, olhei para trás. Vi, então, um homem. O senhor aparentava ter
seus 40 anos, era branco, alto, cabelos grisalhos e mal cuidados. Continuei meu
caminho, agora pensava sobre as contas que deveria pagar na manhã seguinte.
Olhei
novamente para o homem, percebi que ele acelerava o caminhar em minha direção.
Apertei o passo e cruzei a rua. O senhor repetiu meu gesto. Esperei mais alguns
metros e, novamente, cruzei a rua. Ele o fez igual. A essa altura, confesso, o
cérebro começava a desconfiar e o coração começava a acelerar.
“Vou
atravessar a rua mais uma vez, se ele me seguir, ‘pernas para que te quero’”.
Assim fiz. Ele também. Foi então que pensei em começar a correr. Eu estava,
sim, pensando mal do homem, imaginando que ele era um fugitivo de Azkaban,
assassino em série e essas coisas. Não me passou pela mente algo mais calmo.
Mas, sou homem e não pegaria bem eu correr. Já pensou se me vissem fugindo de
um senhor, as 2h30 da madrugada? Poderia não ficar bem para minha imagem.
Comecei,
apenas, a andar mais rápido. Ele idem. Tentei me apressar e esquecer ele.
Quando me dei conta da proximidade que estávamos, não havia mais como correr.
Foi então que veio uma ideia. Coloquei a mão dentro da camisa, simulando uma
arma. O senhor se aproximou, agora era a hora de bancar o valente.
Fui
para cima dele, perguntando o que queria e porque me seguia. Ele já vinha
tirando uma faca do bolso e me dizendo que não gostava de vagabundo. Nessa
hora, confesso, assisti a um filme de minha vida: minha infância, no sítio;
minha juventude, na cidade; minha vida adulta, com medo de um homem e uma faca;
Eliza, áh, pensei em Eliza também. Nossa, em menos de 2 segundos eu já estava
na formatura dos meus filhos com ela, que, provavelmente, nem sabia que eu
existia. Como eu gostaria de ter o coração dela para mim, áh, Eliza. Mas não
era hora de escolher o terno, eu estava quase morrendo.
Voltei
para a realidade. Infelizmente, o homem continuava lá, parado em minha frente,
me olhando. “É agora, meu Deus”, gritei em silêncio. Em minha cabeça, agora, só
passavam coisas como: Ave Maria, Pai Nosso, Creio em Deus Pai... A faca e a mão
dele se aproximavam de meu coração.
Gostaria
de poder dizer que eu tive forças para correr, ou que uma viatura da polícia,
coincidentemente, passou pelo local, ou ainda que o homem fora abduzido por
forças estranhas. Não. Não foi assim.
Semana
passada, 10 anos após essa terrível noite, acordei do coma. Ouvi comentários de
que era um milagre eu ter resistido. Aparentemente, a faca ficou em meu
coração, quase morri. Quem era o homem? Nada de fugitivo de Azkaban, menos
ainda assassino em série. Aquele homem, que quase acabou com todos meus planos,
era só mais um bêbado, que agredia a mulher, faltava no trabalho, votava no 13.
Eliza.
Procurei saber dela. Já imaginava que não a encontraria em minha espera, tudo
bem, estava preparado para vê-la com o marido, o filho. Só queria matar minha
curiosidade, depois de tanto tempo. Fui até seu antigo endereço, não morava
mais lá. A dona da casa, muito simpática, me estendeu um pequeno envelope.
Não
pude acreditar no que vi. Uma lembrança de sua Missa de Sétimo Dia. Como? Não
pude nem tê-la para mim, por um dia que fosse. Ainda bem que já existe internet
fácil nos dias de hoje.
Eliza
alguma coisa. Achei a notícia. “Moça é atropelada ao tentar fugir do pai,
bêbado, que tentava lhe esfaquear. Eliza teve morte cerebral. 22 de agosto de
2003. Coincidência, mesmo dia que eu fui... esfaqueado... por um bêbado.
Voltei
ao hospital, implorei por informações, consegui o registro de meu transplante
e, não podia ser. Teria para sempre comigo o coração de minha Eliza, que Deus a
tenha.
RinelE
Bruna
Pradella
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